TEMPO DE RECUPERAR AS LÁGRIMAS
Durante 40 anos o povo
judeu se preparou, no deserto, para entrar na Terra prometida, numa
história de fidelidade e infidelidade, de obediência e desobediência,
mas sempre contando com a fidelidade divina. Simbolicamente, nosso
caminho para a Páscoa da Ressurreição percorre os 40 dias da Quaresma. E
toda a nossa existência é um caminhar que desemboca na eternidade, na
Terra prometida aos que permaneceram fiéis.
O momento final, porém, nos colocará
diante do Senhor, a quem apresentaremos nossa vida. A morte, escreveu o
filósofo M. Heidegger, é a plenitude de nossa vida. Em nossas mãos
estará nossa existência e, nelas, Deus contemplará como vivemos
concretamente o Capítulo 25 de Mateus – o Juízo final – se fomos ovelhas
ou cabras. E ouviremos as palavras “Vinde, benditos”, ou “Afastai-vos,
malditos”. Seremos julgados pela lei da misericórdia, seremos pesados na
balança da compaixão e, ainda nesse instante, é-nos oferecida a
possibilidade da reconciliação.
Emil Cioran (1911-1995), ateu-crente
romeno, escreveu, evocando a psicostasia do antigo Egito, ou seja, o
momento em que as almas dos defuntos eram pesadas para verificar-se a
gravidade das suas culpas: “No dia do juízo, só as lágrimas serão
pesadas”. Para ele, o mundo é um receptáculo de gemidos.
Na parábola das ovelhas e cabras está muito claro que as lágrimas de compaixão vão ser o critério da verdade final.
A Igreja propõe, como caminho de vida
neste Vale de Lágrimas, a vivência das Obras de Misericórdia Corporais e
Espirituais. Tudo muito claro e, surpreendentemente, simples. Nos
antigos Catecismos as crianças eram obrigadas a decorá-las para depois
vivê-las. Com o tempo, perdeu-se o sentido da simplicidade da fé cristã e
certa generalidade verbosa faz escapar o singelo caminho das lágrimas
das misericórdias.
As Obras de misericórdia corporais são sete: dar
de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus;
dar pousada aos peregrinos; assistir aos enfermos; visitar os presos;
enterrar os mortos.
As obras de misericórdia espirituais são também sete: dar
bom conselho; ensinar os ignorantes; corrigir os que erram; consolar os
aflitos; perdoar as ofensas; sofrer com paciência as fraquezas do
próximo; rogar a Deus pelos vivos e defuntos.
Como deixamos de ser dualistas,
separando o “corporal” do “espiritual”, é melhor que simplesmente
falemos nas Obras de Misericórdia.
Hoje, delas poderíamos desdobrar outras
obras de misericórdia, como proteger os pais idosos e doentes, evitar a
ostentação de riqueza, não desviar do caminho de um pobre, ajudar os
dependentes de drogas, não condenar os aidéticos, não expulsar bêbados
ou doentes da igreja, acolher os migrantes, respeitar a fé dos simples,
proteger as crianças e jovens, socorrer os desempregados, lutar pela
justiça, etc. Para simplificar: agir como Jesus agiu.
As lágrimas e o Vale da Misericórdia
Assim, nosso Vale de Lágrimas não é o
Vale do Exílio, mas é o Vale da Misericórdia, das lágrimas derramadas
diante do sofrimento de nosso próximo. É o Vale formado pelo rio das
lágrimas que foram refrigério para o ardor do sofrimento daqueles que
passaram pelo nosso caminho. E seremos surpreendidos pelas lágrimas
derramadas por tanta gente, e que nem percebemos. Sem as lágrimas de
quem nos amou, a vida teria sido insuportável, como numa depressão
contínua estaríamos sufocados pelo calor do desespero ou da solidão.
Na terra, o Filho chorou pela morte do
amigo Lázaro e pelo sofrimento de suas irmãs Marta e Maria. Seremos
também surpreendidos pelas lágrimas de Deus Pai, pois também ele chora: “Se
não quiserdes obedecer, em segredo minha alma vai chorar: por causa do
orgulho, estarão meus olhos chorando sem parar, derramando lágrimas” (Jr 13, 17). Quanta ternura contemplamos em nosso Abbá num cantinho, chorando, de esguelha olhando para nós para ver se nos decidimos por ele!
Não somos conduzidos pelo pessimismo, pois nenhuma lágrima será perdida: “Contaste os passos da minha caminhada errante, minhas lágrimas recolhes no teu odre; acaso não estão escritas no teu livro?” (Sl 56, 9).
Os Pais do Deserto, os contemplativos e
místicos de todos os tempos invocavam o dom das lágrimas: lágrimas pelo
próprio pecado, lágrimas pelo sofrimento do irmão, lágrimas pelas
lágrimas de Deus. As lágrimas revelam que nossa vida não é empurrada
pela soberba razão, pelo impacto da inteligência, mas pelo sentimento,
pela compaixão.
As lágrimas são fruto de muita oração,
da Eucaristia, dos sacramentos, da penitência, porque nosso instinto não
é chorar pelos outros, mas pedir que chorem por nós. Deus é quem nos dá
a graça de não mandarmos nosso próximo seguir adiante, porque estamos
ocupados ou incapacitados. Nada justifica a omissão: “Quando estiveres extasiado junto de Deus, se um doente te pedir uma tigela de caldo desce do sétimo céu e dá-lhe o que pede” (Ruysbroeck).
O amor é simples, como Deus é simples:
quem é humano de verdade chora diante de quem sofre, guarda as lágrimas
para apresentá-las ao Pai no instante final. O próprio Deus mostrará
nossas lágrimas, pois nenhuma foi perdida.
E, no dia em que o mundo formar um vale
de lágrimas de misericórdia, encontrou a salvação. Toda a criação estará
transfigurada e a humanidade será imagem e semelhança de Deus.
Pe. José Artulino Besen por Jacilene Guimarães.
Pe. José Artulino Besen por Jacilene Guimarães.
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